Terminamos a Semana dos Afetos com a partilha de textos sobre o Amor, escritos por Miguel Esteves Cardoso.
Como
é que se Esquece Alguém que se Ama?
Como é que se esquece alguém que se ama? Como é
que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver?
Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém
morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se
precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os
sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?
Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de
repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de
despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas
maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá.
Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso
aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É
preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém
aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta
estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos.
Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar
entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo.
Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade
é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma
dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos
mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a
separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de
solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o
peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos,
aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem
injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece.
Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para
distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir,
mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos
tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com
grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em
condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração,
de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar…
Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'
Só
um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira
Há coisas que não são para se
perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de
dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é
minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta
de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para
dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona
de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar
sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque
dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não
se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa.
Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da
lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão,
fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor
passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se,
discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante
psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é
na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que
as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente"
apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor
doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de
compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de
hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia,
são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo
bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides,
borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já
ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o
medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e
que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é
para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que
refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um
jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e
descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê
romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja.
Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa
beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos
ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É
uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo
ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é
outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência
assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é
um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um
como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de
quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a
correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita,
não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a
vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida
que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se
alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O
coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida,
quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o
amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber,
amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver
sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder.
Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida
inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Expresso'
Alimentar o Amor
Começar é fácil. Acabar é mais
fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista,
ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se
em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da
primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos
estas atividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é
continuar. A atividade que eu mais amo e respeito é a atividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com
qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão
aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e
cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores.
Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores.
Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.
É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma
se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço
de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou
tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento
e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O
que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou
revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus
princípios, não suporto a autoridade.
É tão fácil ser rebelde. Fica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As
pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas
crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu
prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal.
Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem
desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquiteto.
Gosto de académicos, de colecionadores, de bibliotecários, de antologistas, de
jardineiros.
Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é
mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho
custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse
destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do
que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir
embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga
de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe
dedico este livro, que escrevi à sombra dela.
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas
sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do
que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre
pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja
preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As
obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.
Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República
Portuguesa'
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