Embora o mês das bibliotecas escolares esteja a chegar ao fim, penso que irá sempre a tempo um excerto de um livro tão interessante como A Casa de Papel de Carlos María Dominguez.
"As praias do sul da Argentina não me deixaram a impressão de um pára-brisas num dia de chuva. Talvez o céu, excessivo, a intempérie de areia e de vento, aliados à história de Carlos Brauer, me tenham feito relacionar as costas de Rocha com os pára-brisas e a horrível advertência que retorna sempre que alguém elogia as minhas bibliotecas. Todos os anos ofereço pelo menos cinquenta exemplares aos meus alunos, mas não consigo deixar de acrescentar uma nova estante, outra fila dupla; os livros avançam pela casa, silenciosos, inocentes. Não consigo detê-los.
Muitas vezes me perguntei porque conservo livros que só num futuro remoto me poderiam ajudar, títulos afastados dos percursos literários mais habituais, aqueles que uma vez li e não voltarão a abrir as suas páginas durante muitos anos. Talvez nunca mais! Mas como desfazer-me, por exemplo, de O Apelo da Selva, sem apagar um dos poucos marcos da minha infância, ou de Zorba, o Grego, que com um pranto selou a minha adolescência, de a 25ª Hora, e de tantos outros há anos relegados para as prateleiras mais altas, íntegros, no entanto, e mudos, na sagrada fidelidade que nos adjudicamos.
Amiúde é mais difícil desfazermo-nos de um livro do que de obtê-lo. Ligam-se a nós num pacto de necessidade e de esquecimento, como se fossem testemunhas de um momento das nossas vidas ao qual não regressaremos. Mas enquanto aí permanecerem, presumimos tê-los juntado. Vi que muita gente coloca a data, o mês e o ano da leitura; traçam um discreto calendário. Outros escrevem o seu nome na primeira página, antes de os emprestarem, anotam numa agenda o destinatário e acrescentam-lhes a data. Vi volumes carimbados como os das bibliotecas públicas ou com um delicado cartão do proprietário no seu interior . Ninguém quer extraviar um livro. Preferimos perder um anel, um relógio, o chapéu-de-chuva, do que o livro cujas páginas não mais leremos mas que conservam, na sonoridade do seu título, uma antiga e talvez perdida emoção.
Acontece que, ao fim e ao cabo, o tamanho das bibliotecas conta. Ficam expostas como um grande cérebro aberto, debaixo de miseráveis desculpas e falsas modéstias. Conheci um professor de línguas clássicas que propositadamente demorava a preparação do café na cozinha para que a visita pudesse admirar os títulos das suas prateleiras. Quando verificava que o facto estava consumado, entrava na sala com a bandeja e um sorriso de satisfação.
Nós, leitores, espiamos a biblioteca dos amigos, nem que seja apenas para nos distrairmos. Às vezes, para descobrir um livro que gostaríamos de ler e não possuímos, outras para saber o que comeu o animal que temos diante de nós. Deixamos um colega sentado na sala e no regresso encontramo-lo invariavelmente de pé a farejar os nossos livros. (...)
in, A Casa de Papel - Carlos María Dominguez
Escolhi este excerto do belíssimo livro A Casa de Papel porque a paixão pelos Livros e pelas Bibliotecas sempre esteve presente ao longo do meu percurso existencial. Não sei o que teria sido a minha vida sem os Livros! Todas aquelas existências singulares, misteriosas ou dramáticas que neles encontramos através das personagens , seres de papel que vão ganhando forma e cor à medida que surgem, quase como se se apoderassem das páginas que vamos virando...
Celebro assim o mês das bibliotecas escolares que está a chegar ao fim, mas o Amor que sinto pelos Livros, esse nunca acaba ...! Por Cristina Martins
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